“A mistura das línguas só pode mostrar que a criança está confusa! E o atraso de língua? Todo mundo fala que pode atrasar se eu colocar meu filho numa escola bilíngue desde cedo. É melhor começar depois da alfabetização, não é? Posso continuar a falar português com minha filha em casa ou preciso trocar para o inglês?”
Essas e muitas outras dúvidas e preconceitos estão presentes nas conversas em escolas bilíngues e não só com as famílias! Às vezes, até mesmo professores e equipe administrativa têm algumas dúvidas sobre o que estão vendo no dia a dia. É fundamental que todos estejam alinhados ao falar sobre o bilinguismo, a forma como é conduzido na escola, e a certeza das respostas quando essas dúvidas surgirem.
Agora, vamos abordar 3 dessas dúvidas e preconceitos principais. São mitos que se perpetuam e refletem questionamentos bastante frequentes nos contextos bilíngues. Você pode até mesmo imprimir e distribuir este texto para as famílias que participam da comunidade escolar.
Mito 1 – Aprender uma segunda língua na infância atrasa o desenvolvimento da primeira língua
O primeiro mito muito comum sobre o bilinguismo atrasar a aquisição da linguagem mesmo da primeira língua se origina em questões metodológicas das primeiras pesquisas que foram feitas com crianças bilíngues. Conforme os estudos foram sendo mais bem desenhados para entender o funcionamento da criança bilíngue, esse mito foi completamente desfeito. Aqui, aproveito para citar questões como dislexia, atraso de desenvolvimento global de linguagem, apraxia da fala, discalculia e outras questões do desenvolvimento infantil na área de linguagem, pois também não aparecem em maior número em crianças bilíngues. Existem algumas pesquisas mais novas mostrando – ainda de forma incipiente – que crianças dentro do espectro autista se beneficiam do bilinguismo, mas essa questão ainda precisa ser melhor investigada com pesquisas mais extensas e de longo prazo.
Mito 2 – Pais que falam português atrapalham a aquisição do inglês
O segundo mito de que, quando as crianças falam português em casa elas demoram mais para aprender inglês, tem a ver com tempo de exposição, ou seja, se a criança fala inglês na escola e em casa, ela vai ter um desenvolvimento de língua inglesa muito mais próximo de uma criança monolíngue, e vai ter o português como segunda língua, já que essa é a língua do seu contexto expandido, isto é, a língua que está sendo falada pela avó, no parque, no mercado. No entanto, a família falar português não prejudica a aprendizagem de uma segunda língua! Ao contrário, muitas aprendizagens em uma língua favorecem o aprendizado da segunda língua. Inclusive muitos estudos mostram que a estratégia “One parent, one language”, que é uma forma que famílias de línguas encontram para se comunicar em que um dos pais falam uma língua – por exemplo, no Canadá, o pai fala francês e a mãe fala inglês, ou na Suíça que um pai fala francês e o outro fala alemão –, mostram que as crianças muito cedo, perto de 18 meses, já entendem que é preciso um conjunto de linguagem específica para se comunicar com cada uma dessas pessoas.
Assim, existe essa marca teórica estabelecida de 18 meses para a produção da criança, mas o livro Bilingual Brain, de Albert Costa, diz que “a sizable number of studies have shown that babies are able to discriminate between languages that sound quite different, as soon as hours after birth“.
Mito 3 – Crianças bilíngues sempre vão misturar as línguas
O terceiro mito tem a ver com a criança sempre misturar as línguas. Esse mito é muito interessante para a gente olhar de perto pensando no contexto brasileiro. Essa hipótese foi estudada extensamente pelo pesquisador Grosjean, que concluiu que as crianças bilíngues rapidamente se tornam monolíngues na presença de interlocutores monolíngues, mas isso não vale para contextos artificiais.
O interessante é que ele pesquisou crianças bilíngues no Canadá, que falam francês e inglês, e conduziu uma série de pesquisas. Então ele observou as crianças misturando o francês e o inglês na interação com os pais várias vezes, mesmo quando um pai só falava francês e o outro pai só falava inglês com a criança. Só que esses pais, essas famílias precisavam se comunicar, então a criança via cada pai falando a língua do outro em diferentes momentos. Imagine que no jantar todos estivessem conversando em francês, depois assistiriam um filme em inglês comentando em inglês um com o outro.
Então, mesmo que o filho só receba da mãe, por exemplo, a língua francesa numa interação entre mãe e filho, ele também vê a mãe conversando em inglês com o pai, conversando em inglês no mercado, conversando em inglês no telefone, assistindo à televisão em inglês. Então a criança sabe que, mesmo que a mãe só fale francês com ela, a mãe é uma falante competente de duas línguas e aí a criança mistura as línguas COM A MÃE porque ela entende que a mãe é bilíngue e tem essa capacidade.
Agora, quando essa mesma criança é colocada em um contexto em que está conversando com um monolíngue, ela automaticamente adequa sua fala para monolíngue. Se essa criança está numa conversa com a avó que só fala francês, ela também só fala francês ou reduz drasticamente o uso do inglês. Essas pesquisas começam com crianças de 20 meses, então são crianças que estão produzindo uma ou duas palavras nessas línguas. E desde esse estágio, a criança já é capaz de produzir essa única palavra ou uma combinação de duas palavras de forma monolíngue ou bilíngue dependendo do seu interlocutor.
Esse conhecimento vale ouro para nós, porque sempre que, como professora ou mãe e pai, mostramos para a criança que somos falantes de português competente ao conversar com outra pessoa em português ou na sala de aula quando a gente acha que ela não está entendendo e mudamos para o português, estamos trazendo para a criança o conhecimento de que somos falantes competentes do português, que somos bilíngues e capazes de compreendê-las quando elas falam português, o que é verdade, e isso deixa as crianças cognitivamente confortáveis para falar português com a gente ou misturar o português com o inglês, porque elas sabem que a compreensão do interlocutor, que somos nós, está garantida.
Agora que esclarecemos esses mitos, vamos reforçar algumas vantagens de ser bilíngue, para que a gente também perceba que o trabalho de escolas bilíngues está além de ensinar uma língua! As vantagens têm dois tipos diferentes de origens. O primeiro conjunto são conhecimentos gerados por pesquisas atuais. Há muito mais do que esses três, mas vamos focar apenas nestes. O segundo conjunto de benefícios são as vantagens declaradas por adultos bilíngues. São percepções que essas pessoas relatam como benefícios delas mesmas serem bilíngues.
Pesquisas indicam que:
- Crianças bilíngues performam melhor em tarefas que exigem atenção controlada (selective controlled attention);
- Crianças bilíngues performam melhor em tarefas que exigem análise de representações;
- Crianças bilíngues performam pior em tarefas de vocabulário que exigem uso exclusivo de uma língua até um certo ponto, apesar de que, quando a criança pode usar as duas, o total de vocabulário é maior do que o das crianças monolíngues. Quando uma língua deixa de ser dominante, a performance se iguala à das crianças monolíngues.
Opiniões e percepções de pessoas bilíngues:
- Ser capaz de se comunicar em diferentes situações com diferentes pessoas e conhecer diferentes culturas;
- Saber ler e escrever em mais de uma língua;
- Ter uma visão de mundo mais ampla;
- Mais oportunidades no mercado de trabalho;
- Ter a capacidade de ajudar de forma global;
- Entender realidades diferentes e ter mais perspectivas para analisar situações.
Aqui achamos importante que você perceba como a questão da língua, ou de saber mais de uma língua, se relaciona com a empatia de estar com o outro de forma mais ampla. Isso se dá quando a gente pensa na língua como uma ferramenta para a multiculturalidade, ou seja, a língua coloca a gente em comunicação com algo que é estrangeiro, alheio para nós, e expande a nossa noção de humanidade. E isso só é possível quando a gente ultrapassa a visão instrumental da língua e passa a vê-la como uma forma de compreender e se expressar, de estar com o outro, de interagir e construir o mundo.
Fonte: 3 mitos do bilinguismo a serem combatidos | Blog Bilinguistas