Mas, calma. Vamos ajudar você a detectar se está ultrapassando os limites do zelo e a virar esse jogo desde já.
No parquinho, você pede que ele não vá ao escorregador mais alto pois pode se machucar. Se a lição de casa é muito difícil e ele não consegue entender, você praticamente a faz por ele. Dormir fora nem pensar – mesmo que seja na casa da avó –, pois acredita que ninguém vai cuidar tão bem quanto você. Se der para ficar de olho nele o dia inteiro, aliás, com a ajuda de uma câmera de segurança, em casa ou na escola, melhor ainda.
Identificou-se com alguma das situações acima? Está na hora de ligar o sinal de alerta.
Isso porque, mesmo com a melhor das intenções, atitudes como essas podem prejudicar seu filho tanto agora quanto no futuro. “Mas como assim, eu só quero protegê-lo!”. Sim, sabemos disso. A vontade de colocar nossos filhos em uma bolha e poupá-los de todo mal é compreensível e natural, afinal todo pai quer o melhor para sua cria. Porém, ao tirar da criança a chance de testar seus limites (errar para acertar depois), ser curiosa, aprender a lidar com problemas, ter autonomia e se defender, fazemos com que se tornem pessoas frágeis.
Esse debate tem, inclusive, o respaldo da ciência. Uma pesquisa da Universidade de Minnesota (Estados Unidos), publicada na revista Developmental Psychology, por exemplo, concluiu que pais superprotetores estavam criando crianças dependentes e frustradas. O estudo acompanhou 442 crianças que, aos 2 anos, participaram de sessões de brincadeiras com suas mães em um ambiente controlado repleto de brinquedos. Os pesquisadores avaliaram até que ponto a mãe tentou assumir a tarefa ou deixou que o filho descobrisse sozinho. Depois, quando as crianças tinham entre 5 e 10 anos, seus professores avaliaram problemas como sinais de depressão, ansiedade ou solidão. Segundo os
cientistas, foi possível identificar que filhos de mães mais controladoras mostraram menor controle sobre suas próprias emoções e impulsos aos 5 anos. Aos 10, o quadro ficou mais grave, com piora nas habilidades sociais e no desempenho acadêmico.
É o que discute também a jornalista espanhola Eva Millet, no recém-lançado livro Hiperniños: Hijos Perfectos ou Hipohijos? (“Hipercrianças: filhos perfeitos ou hipofilhos?”, em tradução livre, sem previsão de lançamento no Brasil). “A obsessão pelo hiperfilho (ou seja, perfeito e intocável) resulta em algo que eu chamo de hipocriança, um indivíduo mais frágil, inseguro e dependente, que carece de uma habilidade fundamental para viver: autonomia”, diz a autora. Na obra, ela defende que a ânsia de superproteger resulta na desproteção. Afinal, como a criança vai aprender por conta própria se sempre fazem por ela ou a poupam das dificuldades?
A empresária Tatiana Canova, 39 anos, admite ter diversos cuidados exacerbados com a filha Isadora, 8. Quando a menina vai a alguma excursão com a escola, ela checa os pneus do ônibus e tira foto da placa. Se ela vai à casa de uma amiga, a mãe olha antes todos os locais que apresentam perigo e orienta a filha. Quando Isadora pede para dar uma volta com a vizinha no condomínio fechado onde mora, ela deixa, mas vai atrás e fica de olho por entre as árvores, sem a menina perceber. “Acho que as crianças são muito imaturas e não veem perigo em nada. Não tiro o olho. Confesso que sou neurótica”,
diz. Muitos pais agem assim, querendo o melhor para seus filhos, mas não percebem que podem deixá-los inseguros – Isadora, por exemplo, ao mudar de escola, sofreu para se adaptar.
POR SI MESMO
Sabemos que o zelo de Tatiana tem razão de ser. Hoje, a vida nas cidades mudou e está mais perigosa, o que obviamente afetou o dia a dia das crianças, cada vez mais presas. Por isso, não permitir que seu filho brinque sozinho na rua até tarde ou pedir que não saia de perto de você no shopping ou supermercado são atitudes normais e não superprotetoras.
Então, qual é o limite do controle e do cuidado? “É importante explicar para os filhos os
perigos que existem e a necessidade de se cuidar. Mas sem deixar que essa orientação aconteça por meio de um medo excessivo, e que elas pensem que o mundo longe dos pais e fora de casa é um lugar extremamente perigoso”, defende a psicóloga Lyana Juffo, do Grupo Perinatal (RJ).
Isso porque os efeitos da superproteção nas crianças vão além do que imaginamos. Em um trecho do livro Hiperniños, a autora relata uma história contada por professoras em um programa de rádio na Espanha. Elas relataram que alguns bebês que caíam no pátio da escola, durante as brincadeiras, não se levantavam. Independentemente da intensidade da queda, permaneciam lá inertes, estatelados no chão, o que obviamente provocava o alarde dos adultos responsáveis pelo recreio. E quando estes iam atender essas crianças, descobriam que não havia acontecido nada demais. Elas simplesmente não sabiam que podiam levantar sozinhas. Por quê? “Porque até aquele momento sempre haviam sido socorridas por um adulto. Por esses pais e mães que, evocando o grande Usain Bolt [velocista e medalhista olímpico jamaicano, que quebrou o recorde mundial dos 100 m três vezes, entre outros feitos], diante de qualquer tropeço de seus filhos corriam com a velocidade de um raio para ajudá-los a se recompor”, narra. Como ela mesma conclui, ainda que com a melhor das intenções, esses pais estão evitando que os filhos aprendam algo fundamental, como o fato de que, quando alguém cai, é capaz de levantar-se por si mesmo. “Na tentativa de proteger, os pais que exageram impedem que os filhos se desenvolvam, atrasando inclusive a parte motora, que é um processo progressivo. Assim, muitas vezes, a criança não consegue fazer algo de que já seria capaz. É o caso, por exemplo, de um bebê que poderia engatinhar, mas fica o dia todo dentro de um cercadinho. A criança que é encorajada a brincar com mais liberdade, no parquinho, por exemplo, cresce segura”, diz a pediatra Caroline Gabardo,
membro da Sociedade Paranaense de Pediatria e professora da Faculdade Pequeno Príncipe (PR).
Essa afirmação está alinhada com os pesquisadores da Universidade Rainha Maud (Noruega). Eles fizeram uma pesquisa sobre os playgrounds e viram que parquinhos muito seguros – sem trepa-trepa ou um escorregador mais alto, por exemplo –, nem sempre são os melhores do ponto de vista do desenvolvimento da criança. Outro estudo, feito pela arquiteta americana Meghan Talarowski, analisou playgrounds na Inglaterra e nos Estados Unidos e chegou à conclusão que nos locais com brinquedos mais aventureiros as crianças eram de 16% a 18% mais ativas.
Além do aspecto motor, o excesso de zelo pode afetar também a saúde do seu filho, sabia? “O bebê nasce com a imunidade pouco desenvolvida, então, os pais tendem a protegê-lo. Não é à toa que a recomendação é que seus utensílios sejam esterilizados até o sexto mês de vida, por exemplo”, explica o pediatra Felipe Lora, do Sabará Hospital Infantil (SP). No entanto, especialmente após essa idade, tirar a criança dessa “bolha” é importante para que o organismo dela se fortaleça, segundo o especialista. Isso porque o contato com microrganismos presentes no chão de casa, no quintal, no animal de estimação, por exemplo, faz com que aprenda a se defender deles à medida que cresce. Ou seja, ela pode – e deve! – se sujar.
SABER PERDER
Para Eva Millet, existe uma confusão sobre a forma como devemos amar nossos filhos. O mantra é “amo tanto, tanto, que não quero que sofra e, por isso, faço tudo por ele”. Mas o certo é dar a eles as ferramentas para que não sofram na vida, sem necessariamente evitar o sofrimento. Um exemplo disso foi o comportamento do jogador de futebol Neymar Jr. na última Copa do Mundo, que aconteceu na Rússia. Conhecido por não lidar bem com frustrações, o craque virou meme em jornais do mundo inteiro por brigar com jogadores e juízes em campo, além de exagerar nas quedas. Esse pode ser um dos problemas da superproteção: seu filho não vai aprender a perder. “Vivemos em uma sociedade que não tolera a derrota: confunde-se o ter falhado com ser um perdedor. Porém, na vida, êxito e fracasso podem se alternar e, inclusive, conviver”, diz a autora, no livro. Quando os chamados pais helicópteros (que não à toa ganham o apelido) ficam o tempo todo em cima dos filhos, prontos para qualquer intervenção, o resultado são crianças mimadas, com pouca inteligência emocional e menos habilidades para lidar com o novo.
“A criança superprotegida deixa muitas vezes de entrar em contato com emoções que serão fundamentais para seu desempenho psíquico satisfatório, como raiva, angústia e decepção. Assim, suas habilidades sociais serão rígidas e sua capacidade de adaptação insuficiente em vários âmbitos”, afirma a psicóloga Fabiana Cury, do Cejam (Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim), de São Paulo. Afinal, para se tornar uma pessoa plena e feliz, a criança precisa acreditar em si mesma – o que não acontece quando sempre tem alguém fazendo por ela. “A mensagem que ela registra, nesse caso, é a de que recebe ajuda o tempo todo porque não tem habilidades para tanto”, completa a psicóloga Lyana. Algo que, a longo prazo, pode afetar a autoestima e, por consequência, a qualidade de seus relacionamentos – seja com os colegas da escola agora, seja com os do trabalho no futuro.
Até mesmo no tempo livre das crianças a falta de resiliência aparece. Elas não sabem mais lidar com o tédio e, para não as ver sofrer com a “falta do que fazer”, os pais enchem suas agendas com cursos extracurriculares. E assim, novamente, elas não aprendem a achar a solução por si próprias. “É necessário entender que entretenimento requer tempo e esforço, e que isso não implica lançar mão de um dispositivo eletrônico. Também é importante que elas saibam que são elas, não nós, que devemos consegui-lo”, orienta Eva.
CONTROLE À DISTÂNCIA
Segundo pesquisa recente da CRESCER sobre famílias e tecnologia, 38% das crianças com menos de 2 anos já possuem algum dispositivo eletrônico, entre eles, o celular. Basta dar uma olhada na saída das escolas, onde o aparelho já aparece em mãozinhas de crianças desde o ensino fundamental. A justificativa da maioria dos pais é que ele serve para a família manter o contato com a criança quando ela está fora de casa.
Aqui vale a reflexão: será que a tecnologia pode deixar os pais mais neuróticos e controladores? “Sim, porque quando a criança não atende ou responde, ficam estressados com a ausência de controle momentâneo, imaginando que algo ruim aconteceu”, diz a psicóloga Rita Calegari, da rede de hospitais São Camilo (SP).
A fisioterapeuta Samantha Monteiro, 30, é mãe dos gêmeos Heitor e Gabriel, de 2 anos e 10 meses, e de Benjamin, de 1 ano e 4 meses. Seus filhos ainda não têm celular, mas ela gosta de usar a tecnologia a favor da proteção e controle. Em casa, usa babá eletrônica para quando estão sozinhos em seus quartos e, na escola do mais novo, utiliza o recurso de câmeras com acesso remoto. “Vejo quando está comendo, dormindo, brincando. Tem dia que nem olho, em outros, olho dez vezes. É conforto, saudade e, claro, certo zelo”, diz.
Ela não se acha controladora, mas admite que a tecnologia é mais uma maneira de proteger os filhos, mesmo à distância, e já entrou em contato com a escola para solicitar algo porque viu pelas câmeras. “Pedi para não darem comida para o Benjamin no carrinho, porque ele fica de pé e tinha perigo de cair e se machucar”, conta. Para Rita, é compreensível que os pais, especialmente os de crianças pequenas, usem tais recursos para acompanhar de perto a rotina delas. Mas para não errar “na mão”, eles devem se questionar sobre a real necessidade desse apoio, se é mesmo por cuidado ou superproteção.
LIBERTE-SE!
Acredite: não proteger tanto ou querer poupar seu filho de tudo fará muito bem a ele e a você. Afinal, toda essa preocupação e necessidade de controle podem tornar a maternidade e a paternidade um “peso” difícil de carregar. A gerente de processos Fernanda Zanotto, 33, mãe de Alice, 9 meses, garante que essa atitude é um alívio. “Quando procurei por um berçário, fazia questão de câmeras para eu acompanhar minha bebê de longe. Mas o meu marido foi contra. ‘Você vai enlouquecer’, dizia”, conta a mãe. “Hoje vejo que ele tinha razão: isso teria me tirado o sossego quando ela estava aprendendo a
ficar em pé sozinha… Afinal, cair faz parte”, diz.
E se você está se perguntando: “como me libertar de todos os medos que rondam minha cabeça, dar mais autonomia e criar para o mundo?”, saiba que estabelecer uma relação de confiança é o mais importante. “Ter o hábito de conversar e orientar desde cedo é fundamental para que você conheça o seu filho e tenha a certeza de que os valores que considera essenciais estão sendo transmitidos a ele, ou não”, diz a psicóloga Lyana.
É difícil, claro, mas isso precisa ser explicado aos poucos e com uma linguagem apropriada a cada idade. Da mesma forma que você ensina a comer legumes ou a escovar os dentes. A psicóloga Rita orienta a fazer isso em casa, ao ensiná-la a evitar o fogão, as facas, as janelas e os remédios; no passeio de fim de semana, ao mostrar o jeito certo de atravessar a rua ou andar no parque sem correr no meio dos ciclistas; na rua, ao explicar que ela não deve aceitar nada de estranhos sem consultar os pais; na praia, ao mostrar como ela tem de agir caso se perca. “Tudo isso deve ser entendido por ela como autocuidado, ou seja, é como tomar banho”, completa.
Outro ponto importante é que as orientações não sejam na base da briga e da cobrança e, sim, do amor. O que significa estimular a criança a ser o melhor que ela pode ser, mas também aceitar o fato de que ninguém é perfeito. “Por mais difícil que seja, precisamos educar nossas crianças de forma que sejam capazes de desenvolver habilidades para esse mundo, sabendo que erros têm consequências e que frustrações são necessárias para o amadurecimento. Assim, vão se sentir capazes de resolver seus próprios problemas”, diz a educadora Angelina Neves, diretora pedagógica do colégio Alexandre Dumas, em São Paulo.
AINDA DÁ TEMPO?
Se você leu até aqui e está pensando “nossa, faço tudo errado, tem como mudar?”, fique tranquilo. “Muito do que acreditamos em relação a nós mesmos foi aprendido na infância. Rever essas crenças, refletir sobre a forma de agir e pensar sempre ajuda”, afirma a psicóloga Rita Calegari. Ou seja, investir em autoconhecimento é fundamental nesse processo de mudança, algo que nem sempre é possível de ser feito sozinho. Por isso, se for o caso, não hesite em procurar um profissional com o objetivo de identificar esses bloqueios emocionais e, a partir disso, mudar de atitude.
Quando você perceber isso e se livrar dessas amarras, vai se sentir mais leve e a relação com seu filho vai mudar – para melhor. “Pais superprotetores acabam comprometendo todo o seu tempo com preocupações excessivas, tornando-se inseguros, com eterno sentimento de culpa, irritados e sem tempo para as reais necessidades básicas das crianças, como conversar, ouvir e estar presente nos momentos mais importantes”, lembra a educadora Angelina. A mensagem que fica é: proteção é cuidado e amor, mas sem podar as asas.
O MITO DO FILHO ÚNICO
Segundo dados do IBGE, o número de filhos por família hoje é de 1,77, e a projeção é diminuir ainda mais até 2060. Muito se fala que pais de filho único tendem a “sufocar” mais a criança. Pode acontecer, especialmente com casais que tiveram dificuldades para engravidar ou recorreram à FIV, mas não é regra. Um estudo financiado pela National Natural Science Foundation of China mostrou que crianças que não tinham irmãos alcançaram melhores resultados em questões como flexibilidade e criatividade – capacidades que são estimuladas por pais que incentivam a autonomia, certo?
QUANDO ELE É “INDEFESO” POR NATUREZA
Os pais de crianças com algum tipo de deficiência, de modo geral, tendem a ser protetores além da conta. “É natural, pois querem fazer algo que a criança não conseguiria sozinha ou, então, evitar que sofra bullying ou se frustre”, diz a jornalista Fabiana Ribeiro, mãe de Pedro, 12, e Vítor, 9, que é colunista da CRESCER e cofundadora do projeto Paratodos (que luta pela inclusão). Ela ressalta, porém, que agindo dessa forma a família e demais cuidadores tiram da criança a oportunidade de ela desenvolver todo o seu potencial. “E o que todo pai e mãe quer ensinar ao filho? Autonomia, para que ele não precise mais de
você um dia, não é mesmo? Só que se você fizer tudo por ele, isso não vai acontecer. E o que é pior, o rótulo de que ele é incapaz será reforçado, tanto para ele quanto para a sociedade”, alerta. A dica, então, é fornecer as ferramentas para que as barreiras que o cercam sejam quebradas. “Olhe menos para a deficiência do seu filho e mais para as possibilidades”, conclui.